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Forma de reúso, por Laerte Ramos - 2016

    Artista que tem a escultura como o seu principal estudo de pesquisa, Laerte busca na argila a solução de suas formas e a resposta de suas perguntas. O material possui em si uma camada infinita de memórias até ser transformado propriamente em argila. Do pó que é varrido pelo vento e acumulado na superfície da terra, da chuva que invade e encharca o solo e a  lama que acumula nas beiras dos rios - permitindo que todas estas camadas guardem um dia de seu tempo que muitas vezes se transformam em fosseis e nos trazem fragmentos de nossa história. Quando a argila é modelada e assada, mesmo sendo um material frágil, ela entra em “pausa” e permite  o acesso a memória de seu tempo. Cada pedaço de cerâmica, quando se quebra em cacos, transforma-se em uma palavra afiada agindo no imperativo. Em seu atelier, Laerte respeita a memória da argila reciclando todos os torrões e reutiliza a mesma argila para dar formas as suas esculturas ha mais de 17 anos. 

 

    O barro quando é tocado proporciona duas ações imediatas: 

A primeira é guardar a forma negativa da mão, denunciando quem tocou. 

A segunda é a impregnação imediata, aderindo ao toque, se desprendendo do conjunto ou bloco do qual fazia parte, fugindo para outros territórios em busca de novas memórias para armazenar. No atelier de Laerte este território não é a pia para se lavar a mão e limpar a sujeira, são outras esculturas que se transformam e são definidas como forma de reúso e pesquisa. O próprio material, ensina dia a dia ao artista a importância de reciclar, e perceber o tempo certo de todas as etapas a serem cumpridas. Na varanda de seu atelier, no centro de São Paulo, a argila que é reciclada em baldes ao ar livre, recebe diariamente a poeira da cidade, que impregna em sua argila, trazendo este ar urbano nu e cru em suas formas.

 

 

    As esculturas da série “Forma de Reuso”, fazem parte de um conjunto de formas que são pesquisadas e redesenhadas desde 1999 pelo artista. Estas formas se apresentaram primeiro em xilogravuras - por meio de pequenas matrizes impressas em papel medindo 15 x 9 cm cada. Com o tempo, a série foi criando corpo, se desenvolvendo e “auto-procriando” devido a reutilização de partes de um mesmo desenho para dar continuidade a um outro. O que eram “caixas d’água” inicialmente começaram a dar formas a estruturas aleatórias que seguiam algumas regras como de proporção, ocupação no espaço do papel, e sustentação por “pernas” ou colunas. Mesmo seguindo algumas “leis/regras”, as variantes entre as formas tornaram-se infinitas. Esta série resultou então em dois blocos contendo 100 xilogravuras cada, totalizando 200 xilogravuras com imagens relacionadas. 

 

    Esta série, tem um olhar de catalogação e de retrato, pois mantém uma verticalidade, que remete as próprias caixas d’água que devem possuir uma altura considerável para que seja útil em sua finalidade: pressão, vasos comunicantes, distribuição, etc. Em alguns momentos, estas estruturas foram inseridas em paisagens, sendo apresentadas então dentro de um contexto, contendo solo e espaço, todos representados por blocos negros via a impressão da matriz, ou pela ausência dela determinando então um respiro em branco do papel. Neste momento, a importância da matriz esculpida e impressa sempre em negro, torna-se equivalente com o branco do papel que não recebe tinta. O papel e a matriz dividem a mesma importância dentro desta série de paisagens com estruturas interligadas. 

 

    Dando sequência a estas séries de estruturas de caixa d’água, a pesquisa é retomada depois de dezessete anos em forma tridimensional usando a cerâmica como o meio de desenvolvimento e estudo desta nova série. Neste caso, a cerâmica é desenvolvida com moldes de gesso elaborados um a um via positivos/modelos ora construídos em argila pelo artista, ora coletados por “semelhança de forma”, buscando as mesmas características em embalagens, canos e objetos de contenção. A construção das formas se dá de maneira similar a série de origem de xilogravuras, buscando o reúso dos positivos e modelos a fim de criar e estabelecer conexões de uma escultura com a outra. As “leis e regras” estabelecidas para o desenvolvimento da série, também se mantiveram assim como o uso das “pernas” - tubos de conexões, e a ligação entre o solo e o reservatório por meio de um elo de sustentação. 

 

    A série “Caixa d’água” é uma das mais importantes dentro da pesquisa do artista pois foi com esta obra incluindo uma grande série de paisagens e de sobre-rodas que estabeleceram o inicio da pesquisa do artista em 1997. De lá para cá, por meio de residências artísticas, Laerte aprimorou suas técnicas e estudos em instituições como Cité des Arts, em Paris/França - EKWC, na Holanda - iaab/Beyler Foundation, na Suíça - TPW na China, nas fábricas de Vista Alegre e também Bordallo Pinheiro em Portugal, entre outras residências que permitiram seus estudos e pesquisas. 

 

    “Forma de Reuso” é um resgate e um mergulho entre possibilidades de conexões com o passado e o presente, devido a catalogação de formas-ícones que habitam paisagens há anos fornecendo e armazenando água, além de se destacar nas skylines das cidades e estradas. Em São Paulo, beirando as marginais, estes reservatórios icônicos tem seus territórios demarcados em nossas lembranças, como por exemplo a caixa d’água da “bic”, que ainda resiste na paisagem, e agora faz parte deste grande conjunto de esculturas de Laerte. As cerâmicas, esmaltadas em branco, formam uma centena de esculturas de tamanho “doméstico” que se apresentam em um pelotão, tendo ainda como forma de acabamento e junção entre as partes de cerâmica o rejunte de azulejo e fitas de vedação. As esculturas desta série são modulares, e tem uma grande quantidade de conexões e possibilidades de encaixes, deixando aparente ao olhar a forma de reuso do artista.

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