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A cerâmica e suas poéticas, por Silvia Noriko Tagusagawa - 2015      Tese de Doutorado

Laerte Ramos (São Paulo, São Paulo,1978) : ícones cerâmicos

   A primeira vez que vi o trabalho do Laerte Ramos foi através de uma pesquisa apresentada por uma aluna de graduação em Artes Plásticas na ECA-USP, em que ela falava da instalação re.van.che. Trata-se de uma instalação que foi primeiramente apresentada no Paço das Artes da Universidade de São Paulo, em que Laerte expõe uma academia de Artes Marciais com objetos como luvas, saco de pancada, banquinhos entre outros acessórios utilizados para os treinos. A instalação surpreende o espectador, pois tudo é feito em cerâmica. Anos depois, lembrei-me exatamente deste trabalho e comecei a pesquisar outras obras. Fiquei entusiasmada e interessada com sua grande produção artística em cerâmica. Entrei em contato com Laerte e marcamos uma entrevista em seu ateliê localizado no Centro da cidade de São Paulo, no bairro Campos Elíseos, num antigo prédio, próximo a comércios e muito trânsito (típico da Capital paulistana). Logo na entrada do prédio, um simpático senhor perguntou aonde eu iria e eu respondi que marquei um horário com o Laerte Ramos. Depois de autorizar minha entrada, peguei um antigo elevador que me conduziu até o seu ateliê. A porta já se encontrava aberta. Laerte saiu em meio a mesas repletas de moldes de gesso, argila, esculturas e ele logo se desculpa, pois acabara de mudar seu ateliê e havia voltado de uma temporada no exterior e exposições. 

   Laerte contou que desde o início de sua carreira, dedica-se totalmente às Artes Visuais. Nascido na cidade de São Paulo, desde a infância teve contato com a Arte, devendo parte de sua formação artística à escola Waldorf e ao curso de Artes Visuais na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado). Seu pai, hoje falecido, foi engenheiro e artista, realizou exposições e participou de uma bienal em São Paulo, mas por razões de força maior deixou a carreira artística, passando a se dedicar à profissão de engenheiro. Laerte lembra com carinho que seu pai viajava para vários países e costumava trazer livros de maquinários, o que muito lhe inspirou.

 

   “Na verdade, os trabalhos de Artes do meu pai, Adhemar Ramos, eu vi pouquíssimos. Conheci mais o lado engenheiro dele. Eu via muito os livros de engenharia dele. Eram livros incríveis que ele trazia de vários países que ele visitava. Ele costumava ir para a Índia, Japão, Estados Unidos e Alemanha, sempre trazia catálogos de maquinários, umas coisas que não existiam aqui na época. [...] Ele viajava muito para comprar máquinas e ver novas tecnologias. Eu via todo esse material. Então, para mim eram desenhos incríveis e vejo que meu trabalho tem muito esse olhar de uma criança, que olha para alguma coisa e não entende, mas acha tudo lindo. Quando uma criança vê um tanque de guerra pela primeira vez, por exemplo, ela vai achar aquilo fascinante, não importa a sua função, aquilo é bonito. Então, meu trabalho tem muito isso.”

   Segundo Laerte, seu olhar de criança é traduzido em seus trabalhos. Manoel de Barros já dizia: “A infância é a melhor fonte de poesia que existe”[1]. E esse resgate da infância, Laerte faz todo o tempo. Através de suas xilogravuras e esculturas.

 

   “O incentivo ao resgate da infância eu tive muito na escola Waldorf. [...] vários professores meus eram refugiados de guerra. Tinha um professor cujo sapato tinha o bico elevado, pois ele não tinha os dedos do pé, porque foram perdidos congelados e havia outro que construiu um planador para fugir. Tinha também uma professora que foi cantora da Opera de Berlim e se escondeu num bueiro. Então, as experiências de cada um eram tão ricas, e eram histórias tão marcantes e incríveis. Tudo sob o olhar daquela criança. [...] Então, isso influenciou muito o meu olhar infantil, o entendimento do mundo. Claro, eu não passei por essas experiências de guerra, mas essas histórias  me deram uma vivência. Talvez por isso eu leve isso para a Arte, pois foi uma vivência bonita. não foi uma coisa horrível que eu vi, sangue, gente sofrendo. Eu trago a força desses vencedores, que sobreviveram,  histórias de superação.”[2]

   Laerte conta que foi na gravura, especificamente na xilogravura, que sua poética teve um encontro especial e até hoje se dedica a ela. Posteriormente, os trabalhos em xilogravura o impulsionaram para outras manifestações.

 

   “No meu caso, eu tive realmente esse encontro na xilogravura, acho que eu estava no terceiro semestre da faculdade. Eu gostei muito da técnica. Uma coisa é você pegar um lápis e papel para desenhar e ter o poder sobre aquilo, a outra é a gravura que tem vários procedimentos que demoram um pouco.”[3] 

 

[1] Trecho retirado do documentário “Manoel de Barros - 'Só dez por cento é mentira” – Direção:  Pedro Cezar. (http://www.sodez.com.br/).  Acesso em: 12/08/2013.

[2] Trecho da entrevista com Laerte Ramos concedida a Silvia Tagusagawa.

[3] Idem.

   As imagens reproduzidas estão relacionadas com a sua infância: histórias de guerra, maquinários e brinquedos. 

 

   “Tive um professor no curso de licenciatura que indagou sobre o meu trabalho e pediu para levar alguns cadernos da minha época de infância, quando levei e abri, era igual! Era a mesma coisa! Tinha soldado, tinha um tanque, tinha um trator que mais lembrava um tanque, tinha um poço. Olhei aquilo (admirado), (pois) são coisas que eu faço hoje. Ou seja, os desenhos que eu encontrei como artista, são os mesmos de quando era criança e eu não usei isso para a pesquisa. Tudo isso estava guardado lá.”

As imagens que remetem às coisas de sua infância, livros de seu pai, brinquedos e histórias dão origem às xilogravuras: Sobre rodas, Caixa d’água e Paisagem. As imagens são cuidadosamente elaboradas e possuem regras.

   “[...]\Na série Sobre Rodas, todas as matrizes de xilogravura são de 30 cm x 36 cm, são máquinas sobre rodas e tem que ter rodas ou algo do gênero. Então, existem algumas regras e leis. Dentro dessas regras e leis, eu ainda consegui viver várias vezes, mudando de acordo com as mudanças externas. Então, essas coisas que vejo na minha vida, eu vejo também mudando no meu desenho..”[4]

 

   Essas “regras e leis”, certamente, dão uma direção ao seu trabalho. É o fio condutor descrito por Cecília A. Salles:

“Em toda prática criadora há fios condutores relacionados à produção de uma obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo. São princípios envoltos pela aura da singularidade do artista. [...] São gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal, singular e único.”[5]

   Além do seu universo particular, suas residências e as exposições das quais participou, suas viagens enriqueceram tanto a sua formação artística, quanto técnica. Durante a faculdade, teve a oportunidade de participar de residências artísticas internacionais na Cité dês Arts, em Paris, e em seguida fez outra residência na Iaab/Beyeler Foundation, em Basel, na Suíça. Experiências que permitiram o conhecimento de novas culturas e a ampliação do olhar para o desenvolvimento de seu trabalho.

   Em 2003, Laerte Ramos foi convidado para um leilão beneficente de pratos em cerâmica promovido Associação Amigos do Museu Lazar Segall, que visa angariar fundos para o Museu. Anualmente, o evento convida vários artistas de renome nacional e internacional para fazer interferências em pratos que são leiloados.

   “Certa vez, me chamaram para participar de um leilão de parede usando pratos em cerâmica no Museu Lazar Segall e quem me convidou foi a Juliana Monaschesi. Fui até um ateliê de cerâmica e havia alguns pratos, fiz o trabalho e eu gostei daquele ambiente, havia uma familiaridade [...].”

 

[4] Idem.

[5] (SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 2004, p. 37.

   O fascínio que Laerte tem pelo contato direto com a matéria, seja a madeira, a tinta ou a argila, é evidenciado nessa procura por meios que exigem do artista a relação mente/ olhos/ mãos/ matéria.

   Na sua retomada da cerâmica, interessa-se pelo molde de gesso como meio de expressão. Laerte vê na cerâmica a possibilidade de tornar o que estava no campo bidimensional, tridimensional. As formas tridimensionais são as imagens que já trabalhava na xilogravura.

   Em 2007, foi convidado a participar de uma residência na EKWC (European Ceramic Work Centre), por conta do ano do Brasil na Holanda. Segundo Laerte, foi uma grande oportunidade de aprofundamento ao plano tridimensional e às técnicas cerâmicas.

 

 “Nesta última residência, Laerte teve a oportunidade de expandir e aprimorar seus projetos tridimensionais, que tinham como raiz-mãe a xilogravura, e através do paralelo entre a reprodutibilidade e ‘tridimensionalidade chapada’ que havia em suas gravuras, as quais eram representadas bidimensionalmente em papel estampado, ocorreu o encontro com a cerâmica, graças à maneira de reprodução via molde que esta técnica permite.”[6]

 

   Entre 2012 e 2013, participou de residências artísticas, ambas em Portugal, uma na fábrica Bordallo Pinheiro e a outra na fábrica de cerâmica que possibilitou tanto o aprimoramento técnico como também conhecer o meio de produção industrial e suas especificidades.

Atualmente, trabalha em seu ateliê o Studium Generale em São Paulo.

 

[6] Trecho da biografia de Laerte Ramos em www.laerteramos.com.br 12/07/2013

3.3.1. Poética de Laerte Ramos

   Laerte Ramos utiliza moldes de gesso para reproduzir suas peças. A repetição faz parte de sua poética. Segundo o artista, esse é o recurso que ele traz de suas gravuras. “Os moldes funcionam como matrizes...”[7]

   Dependendo do projeto, ele utiliza molde para colagem (no qual a reprodução é feita com barbotina), em outros, faz uso da massa cerâmica pressionada contra o molde. As peças passam pela queima de biscoito e posteriormente o artista esmalta suas peças com vidrados prontos de baixa temperatura. Além dos vidrados, em alguns projetos ele usa pintura a frio com tintas sintéticas ou  acrílicas.

   Em seus primeiros trabalhos, como na série Acesso Negado, ele trouxe para o plano tridimensional as figuras trabalhadas na xilogravura. As cores também são baseadas no contraste preto e branco da técnica bidimensional.

 

[7] Trecho da entrevista concedida a Silvia Tagusagawa.

   Laerte ressalta que suas cerâmicas são a continuação de suas gravuras, carregadas com as mesmas leis de reprodução.

 

“É como se todos os meus desenhos de gravura fossem estudos para eu ir para o tridimensional. A partir daí eu entendi, vi um pouco da técnica da cerâmica e descobri a técnica da argila líquida (barbotina). Você injeta argila líquida num molde de gesso e você consegue reproduções de um mesmo objeto. Que é o mesmo raciocínio da xilogravura, em que há uma matriz que utilizo para imprimir e fazer cópias. Continuo usando a reprodução com poucas tiragens. Por exemplo, as gravuras são três, as esculturas também são três, o que me deixou muito próximo desses dois meios. Por isso que eu falo que a minha cerâmica ainda é minha gravura. A gravura, ainda é a coisa mais importante na minha produção. Criei, então, a série Acesso Negado. Ela é praticamente a série Sobre Rodas, mas em escultura. Por isso, que elas têm o branco e o preto da impressão.”

   Em seus outros trabalhos, Laerte se apropria de objetos, assim como na instalação em cerâmica re.van.che (2009), utilizando-os como modelo para a produção de moldes. No caso de 50% off (2014), Laerte reproduziu, de maneira hiper realista, 300 pares de tênis de várias marcas conhecidas. 

Assim como nas gravuras, Laerte toma para si alguns desafios pessoais, como por exemplo, fazer determinado número de trabalhos num tempo determinado, como é o caso da instalação 50% off:

 

“[...] é um número que eu determinei para chegar nos 300 e que é um desafio pessoal. Na verdade, eu comparo minha produção com o desempenho de um atleta de olimpíadas, sempre em busca de sua melhor marca  [...]”.[8]

 

Além do desafio pessoal, Laerte traz para suas obras questões mais subjetivas. No caso de 50% off, as reflexões acabam partindo para o que está inserido no tema tênis e suas histórias: 

“Não quero tirar fotos dos tênis de vários ângulos e ficar explicando a anatomia dos pés de seus donos. No entanto, esses desgastes das solas são detalhes silenciosos que fui percebendo, para mim fazem sentido e acho interessante, mas não precisa ficar claro. Logicamente que numa conversa isso acaba ficando claro, mas não é uma coisa que quero ‘gritar’ ao mundo. Pois os tênis novos, não contam histórias de ninguém, mas os outros contam. Eles contam histórias das próprias marcas, por exemplo, se é Nike estou falando da Nike, se é Rainha, estou falando de uma marca brasileira, da Topper, etc.Peguei um Kichute. Por que peguei um Kichute? Porque é uma chuteira que foi muito importante para os meninos dos anos 70/80. Por muitos anos, ele foi utilizado por alpinistas. Eles retiravam as travas, deixavam a sola lisa e depois eles podiam subir nas rochas.”[9]

Laerte Ramos mantém viva sua motivação interna e impõe sempre novos desafios. Cada trabalho finalizado dá origem a outro, como é o caso da instalação Casamata. Neste trabalho, Ramos faz referência à arquitetura militar, na qual casamata é uma construção fortificada fechada e abobadada à prova dos projéteis inimigos. Para Ramos, há uma relação também com a casa do pássaro João de barro.

[8] Trecho da entrevista com Laerte Ramos concedida a Silvia Tagusagawa

[9] Idem.

3.3.2. Entrevista com Laerte Ramos (São Paulo, 04/12/2013)

Silvia: Em sua biografia, desde a infância você teve contato com a Arte, estudou na Escola Waldorf o que estimula bastante. Seu pai também foi artista.

 

Laerte: Meu pai chegou a participar da Bienal de São Paulo.  Ele era engenheiro e artista, trabalhava na Volkswagen, lia texturas de metal com lentes absurdamente precisas. Então, ele enxergava um metal que nós não conseguimos ver e eram texturas muito bonitas.  Num dado momento, ele quis mostrar isso para o mundo, algo que só ele via. Ele começou a pintar isso. Então, ele lançou uma série de metamorfoses ligada ao que ele via nessas texturas.

 

Silvia: Qual é o nome dele?

 

Laerte: Adhemar Ramos. Ele já é falecido. Ele participou de salões de Artes. [Certa vez] saiu uma matéria no jornal que tinha a obra O porco, do Nelson Leiner, ao lado da pintura do meu pai. Mas acontece que ele tinha quatro filhos, era engenheiro e nunca deixou de ser e teve que fazer algumas opções de vida. Ele não concordava com algumas coisas que havia no mundo da Arte, por isso, seguiu a vida como engenheiro.

O tempo da Arte é mais lento. Nós estamos acostumados com coisas de computador, e-mail, celular, internet que é tudo muito rápido e imediato. No entanto, o tempo da Arte é um momento de reflexão, é aprimoramento de uma técnica e de um entendimento. Fazemos um trabalho e só depois entendemos o que é e nem tudo que fazemos, nós sabemos. Vamos nos perguntando e sendo guiados pelas perguntas. Então, é tudo demorado.

 

Silvia: Você disse que tem mais três irmãos.  Algum deles também é artista?

 

Laerte: Tenho uma irmã que é nutricionista e não desenha bem. Tenho mais dois irmãos que, pelo eu que via, davam de dez a zero em mim no desenho. Eles poderiam ser excelentes artistas hoje, mas um é publicitário e o outro é veterinário. O que é publicitário tem bastante proximidade com a Arte, com esse universo.  Até porque a nova tendência da publicidade é fazer propagandas e pegar o consumidor de maneira intensa e profunda. Então, o trabalho da publicidade está encostando com a Arte hoje em dia. E o trabalho dos artistas está encostando com as questões da publicidade. Então, está havendo essa troca.

 

Silvia: Depois, você foi estudar Artes na FAAP. E foi sua primeira opção?

 

Laerte: Não, foi Administração. Na verdade, eu não sabia o que eu queria mesmo. Prestei Administração, mas nem fui ver o resultado do vestibular. Depois de um tempo, prestei para Artes, mas meio sem saber o que era aquele curso, não conhecia ninguém que estava fazendo, não tinha mais informações e fui fazendo. Mas para mim, o que foi mais determinante na minha carreira e que influencia até hoje isso foi um professor que se chama Toshifumi Nakano que já é falecido. Fazia três meses que estava na faculdade e ele falou para todos os alunos que tinha um salão de Artes na faculdade no segundo semestre. Eu havia entrado na segunda metade do ano. Então, ele disse estavam abertas as inscrições, era para os alunos se inscreverem porque ali dava bolsa. Aí eu falei, “Que legal!”. Estava meio sem grana e pensei que se conseguisse uma bolsa seria muito bom. Só que eu só tinha 3 meses de faculdade, ou seja, não tinha nada, eu não sabia o que era aquilo. (De qualquer forma) mandei uns trabalhos de conclusão que tinha feito na Escola Waldorf que eram umas cabeças em argila. Esse trabalho foi premiado. Daí eu ganhei 50% de bolsa. No dia da premiação eu não fui, pois, na época, não compreendia muito que era aquilo. Depois, eu fui visitar a exposição e vi que tinha uma estrelinha no meu trabalho. Aos poucos, comecei a entender como as coisas funcionavam. Isso foi um motor na carreira e uma das minhas metas era sempre ganhar os concursos na faculdade para poder pagar a faculdade. Consegui quatro bolsas lá. Consegui também uma bolsa residência pela FAAP.

 

Silvia: Isso foi depois da faculdade?

 

Laerte: Não, foi durante, em 2001. Tranquei matrícula na FAAP e fui para a Cité Internationale des Arts[10] em Paris. Depois voltei e continuei a faculdade.

 

Silvia: Na residência, o que você desenvolveu lá?

 

Laerte: Na verdade, desenvolvi experiência de vida. Numa experiência internacional você conhece vários artistas, lugares e museus. Trabalhei bastante no ateliê, tive contato com várias pessoas e viajei bastante. Fui para a bienal de Veneza pela primeira vez, e em Basel.  Fiz também uma exposição individual lá em Paris.

 

Silvia: Você tem um trabalho de gravura que até hoje você desenvolve. Você iniciou na faculdade? Conte-me sobre o início de sua carreira.

 

Laerte: Quando entramos na faculdade, não temos a mínima noção do que vai acontecer, ou, preconcebemos ideias sobre isso. Chegamos lá e compreendemos que é um universo extremamente complexo, existem vários setores e segmentos. Um deles é o contemporâneo de museu e galeria. Enfim, não é que temos que escolher um, mas nós acabamos sendo guiados pelos próprios professores para a Arte Contemporânea mesmo, que é o mais sedutor. O que é mais desafiador para um estudante de Artes ou jovem artista que quer realmente desenvolver uma carreira é você encontrar seu próprio trabalho: é você pegar um papel ou pedaço de barro, você construir/fazer um trabalho e você falar que isso é seu. E quando o mundo olhar saber que isso é seu, não precisar de uma assinatura. Aliás, (o conceito de) assinatura caiu há muitos anos. Então, quando você encontra o seu trabalho e sabe dizer quem é você ou o que você quer dizer para o mundo, utilizando técnicas de Arte, isso é o maior desafio. Tem muitas pessoas que conseguem, tem outras que não e há pessoas que encontram isso depois de se formar. Ainda há aqueles que nunca estudaram Artes e já nasceram com isso. Você muda da água para o vinho quando encontra esse caminho e o próprio trabalho também vai mudando assim. No meu caso, eu tive realmente esse encontro na xilogravura, acho que eu estava no terceiro semestre da faculdade. Eu gostei muito da técnica. Uma coisa é você pegar um lápis e papel para desenhar e ter o poder sobre aquilo, a outra é a gravura que tem vários procedimentos que demoram um pouco. Então, você tem que ter um esforço na madeira, tem que cavar, depois passa a tinta e imprime no papel. Quando você imprime, sai invertido. Ou seja, eu acho que esse procedimento mais lento da gravura ensina mais a desenhar, eu aprendi a desenhar com a técnica da gravura, da xilo, no caso. Para mim, a xilo foi minha maior professora, aprendi muito e até hoje aprendo a desenhar com ela. Tenho um projeto, por exemplo, que se chama Sobre Rodas que eu desenvolvo desde 2000. Trata-se de 1127 matrizes e ainda está em fase de execução.

 

Silvia: Quais são as dimensões dessas matrizes?

 

Laerte: 30 cm x 36 cm. São 1127 matrizes e é um trabalho só. Daí, vem aquela história de aprender com o trabalho. Eu não quero pegar esse trabalho e, para terminar, dizer que terminarei daqui um mês. Porque eu entendi que é aquilo que eu estava falando, de você aprender com a técnica, permitir que a xilo lhe ensine a desenhar.  E o que aconteceu no decorrer destes treze a catorze anos foi que eu mudei. Eu também comecei a trabalhar com escultura, minha mão mudou, ficou mais forte, quebrei a mão uma vez. O mundo mudou e a paisagem também. Eu mudei de casa várias vezes. Existiram vários "EUs" e esses Laertes acabam aparecendo também nesses desenhos. Na série Sobre Rodas, todas as matrizes de xilogravura são de

30 cm x 36 cm, são máquinas sobre rodas e têm que ter rodas ou algo do gênero. Então, existem algumas regras e leis. Dentro dessas regras e leis, eu ainda consegui viver várias vezes mudando de acordo com as mudanças externas. Então, essas coisas que vejo na minha vida, eu vejo também no meu desenho. Com treze, quatorze anos de carreira, eu consigo voltar e enxergar essas mudanças. Para mim é muito melhor demorar mais tempo para terminar um trabalho grande como esse, do que fazer em 4 ou 6 meses. O aprendizado é muito melhor.

 

Silvia: É isso que percebemos nas figuras, quando dispostas uma ao lado da outra, que há regras e sequência. Até mesmo nas esculturas cerâmicas.

 

Laerte: Sim. Há algo que é uma constante. Às vezes, é uma coisa que eu adiciono ou subtraio e crio outra nova. É infinito e também tem aquela coisa de se desafiar. Quando eu terminava 10, eu me perguntava se eu seria capaz de fazer 30. Quando chegava nas 30, eu pensava que foi legal, gostei do resultado. E aí partia para um número maior. Eu sempre fui exigente comigo mesmo, me desafiar, colocar números grandes e tentar conseguir fazer. E esse trabalho está em andamento.

Ao mesmo tempo em que desenvolvia a série Sobre Rodas eu também estava fazendo a série Caixa D'água, que é algo mais para o retrato. Eu também contextualizava essas imagens em paisagens. Fiz uma série de Paisagens também.

Certa vez, me chamaram para participar de um leilão de parede usando pratos em cerâmica no Museu Lazar Segall e quem me convidou foi a Juliana Monaschesi.  Fui até um ateliê de cerâmica e havia alguns pratos, fiz o trabalho e eu gostei daquele ambiente, havia uma familiaridade, pois já havia frequentado vários ateliês de cerâmica, o contato com a argila.

 

 

 

 

Figura 117

Laerte Ramos

Cerâmica esmaltada

Leilão de Pratos para Arte VI – 2003, Museu Lasar Segall[2]

 

Para mim, a argila é um material que eu tive durante a minha infância. Então, o contato com a argila é uma coisa muito forte. Porém, quando eu descobri o meu desenho na xilo, eu deixei isso de lado. Então, quando eu voltei nesse ateliê, ativou esse lado da minha infância. Uma semana depois, eu estava com a escultura pronta. E meu trabalho do Sobre Rodas e Paisagens, para mim, eram muito esculturais. Então, são formas bem tridimensionais, você olha é bidimensional e por outro lado, é tridimensional.

Do bidimensional para o tridimensional foi muito rápido. É como se todos os meus desenhos de gravura fossem estudos para eu ir para o tridimensional. A partir daí eu entendi, vi um pouco da técnica da cerâmica e descobri a técnica da argila líquida (barbotina). Você injeta argila líquida num molde de gesso e você consegue reproduções de um mesmo objeto. Que é o mesmo raciocínio da xilogravura, em que há uma matriz, que utilizo para imprimir e fazer cópias. Continuo usando a reprodução com poucas tiragens. Por exemplo, as gravuras são três, as esculturas também são três, o que me deixou muito próximo desses dois meios. Por isso que eu falo que a minha cerâmica ainda é minha gravura. A gravura, ainda é a coisa mais importante na minha produção. Criei, então, a série Acesso Negado. Ela é praticamente a série Sobre Rodas, mas em escultura. Por isto, que elas têm o branco e preto: o preto da tinta e o branco que vem do papel branco.

A série Acesso Negado possui pequenas esferas e palitos na parte de debaixo, permitindo que as esculturas fiquem mais leves e não encoste sua base na mesa ou em qualquer outro suporte. Permite uma sensação de peças mais infladas, levinhas e ainda quando você olha, tem essa possibilidade de movimento. Além disso, esses elementos dão a possibilidade de questionar se o objeto se movimenta ou não. Gosto de trabalhar com essa coisa da imaginação também. Acabei agregando valores do movimento, do preto e do branco. Mesmo sendo brancas, eu conseguia acrescentar o preto nelas, sem tinta, utilizando as fendas. Nos buracos não há luz, então, sai algo como uma sombra preta de dentro. Então, todas essas coisas vieram da gravura e infestou nas minhas cerâmicas. Para mim, essa série é uma das mais importantes, pois há esse encontro.

E graças a esse leilão de pratos. Talvez se eu não tivesse sido convidado, não despertaria tudo isso.

 

Silvia: E no prato, você fez um desenho que já tinha sido desenvolvido?

 

Laerte: Fiz um desenho normal. Na verdade, fiz um prato que compôs um painel de 180 pratos, na qual cada artista convidado fazia um. O resultado das vendas seria revertido para a Associação Amigos do Museu Lazar Segall e é um evento que acontece anualmente até hoje. Nesse tempo também, trabalhei com serigrafia, vídeo e por um tempo acabei me envolvendo com moda.

 

Silvia: Tem vários vídeos seus no Youtube em que você mistura os vídeos e as gravuras[12].

 

Laerte: Sim. Lá, eu usei a própria linguagem do vídeo como elemento. Usei a barra de cores e era num tempo em só existia a fita VHS e não tinha nem DVD. Então, essa coisa do looping era quase uma novidade. Naquela época, quando havia uma exposição com vídeo, colocava-se a fita VHS, acabava a fita e tinha que voltar. E aí ficava sempre um tempo sem ter o vídeo passando, a obra de arte. Para mim, era uma falta de respeito com o espectador porque muitas vezes pagava ingresso para ver a exposição. Isso é algo que não acontece com a gravura, ou a pintura ou a escultura, pois as obras são postas ali e estarão sempre presentes. Não tem esse problema. Então eu comecei a pensar nesse outro tempo, de respeito com o espectador. Meu trabalho era sempre sobre a barra de cor. Era sempre sobre essa pausa e hoje não faz mais tanto sentido.

In: https://www.youtube.com/watch?v=JNhS9VGZeB4 12/11/2013)

 

Figura 118

Laerte Ramos

Vídeo produzido por Laerte Ramos

Trem

2006

 

Silvia: No percurso artístico, há muitos trabalhos que estão guardados, em execução etc. Quem está de fora, não tem noção do que acontece antes das obras estarem numa exposição, os esforços, as negações, o tempo, etc.

 

Laerte: Quando eu faço exposições, eu sempre realizo oficinas, conversas e palestras. Há uma troca com o público. Acabei de voltar de Birigui, no SESI (Serviço Social da Indústria), fiz uma oficina e uma palestra. Acho que se vou para uma cidade que ninguém me conhece e não conheço ninguém, e lá eu faço a exposição e volto correndo, sem ter uma relação com a cidade e as pessoas, tudo isso acaba sendo uma mentira, não tem sentido ser feito. Se eu me interessei em fazer uma exposição, eu tenho que me relacionar ao máximo, senão não faz sentido. Fica vazio. Eu sempre coloco isso como uma condição: ficar lá pelo menos dois ou três dias e fazer coisas para haver essa troca, tendo como objetivo aprender sobre a cidade onde eu estou expondo os meus trabalhos e para eles saberem quem sou eu.

 

Silvia: Essa vivência, além de criar proximidade entre público e artista, possibilita também a valorização ainda maior da obra por parte deste público.

 

Laerte: E o retorno disso também é rico. Eles mandam e-mails agradecendo e às vezes fazem perguntas a respeito dos trabalhos entre outras coisas. É super bacana. No meu ponto vista, o artista deveria ter um papel um pouco mais social, além de querer ser famoso. Acredito que com essa onda de facebook, quantas curtidas que você recebe, mostra a necessidade se criar celebridades. E muitos artistas acreditam que tem que ser assim, esquecendo esse lado mais humano mesmo.

As pessoas com quem eu gosto de conversar bastante e que estão bem próximas dos trabalhos nas exposições, muito mais que os curadores, são as faxineiras e os seguranças. Eles têm um olhar que não está viciado em Arte e é um olhar puro e direto. São pessoas normais, comuns e que não têm um estudo direcionado para isso, mas eles têm uma sensibilidade extra. Isso para mim é muito interessante.

Acho que isso fecha um ciclo, pois se você só fica no ateliê trabalhando, não ocorre esse ciclo. Você fica isolado, faz exposição e não se relaciona com as pessoas. Não há um retorno e não traz elementos novos para o seu trabalho, nem dá subsídios para dar continuidade a sua pesquisa.

 

Silvia: Voltando ao seu percurso, na sua poética está presente a questão das máquinas, temas bélicos misturados com brincadeiras de crianças. Fale-me sobre as suas influências.

Laerte: Na verdade, trabalhos de Arte do meu pai, eu vi pouquíssimos. Conheci mais o lado engenheiro dele. Eu via muito os livros de engenharia dele. Eram livros incríveis e ele viajava muito também. Ele ia para a Índia, Japão, Estados Unidos e Alemanha. Sempre trazia catálogos de maquinários, umas coisas que não existiam aqui na época.

Ninguém viajava ou saía do país para trazer esses livros. Ele viajava muito para comprar máquinas e ver novas tecnologias. Quando ele trazia, eu via todo esse material. Então, para mim eram desenhos incríveis e vejo que meu trabalho tem muito esse olhar de uma criança que olha para alguma coisa e não entende, mas acha lindo. Quando uma criança vê um tanque de guerra pela primeira vez, por exemplo, ela vai achar aquilo fascinante, não importa a sua função, aquilo é bonito. Então, meu trabalho tem muito isso. Tem essa coisa de uma experiência vivida por uma criança observadora. Eu não entendia esses livros, não sabia o significado, mas absorvia essas imagens e essas figuras. Só depois que eu entendi tudo isso, quando o meu trabalho estava praticamente feito: meus desenhos, os traços definidos, os tanques de guerra etc. Eu tive muito incentivo na escola Waldorf. Como eu digo em vários depoimentos, vários professores meus eram refugiados de guerra. Tinha um professor cujo sapato tinha o bico elevado, pois ele não tinha os dedos do pé, pois foram perdidos congelados e havia outro que construiu um planador para fugir. Outra professora foi cantora da Ópera de Berlim e se escondeu num bueiro. Sob o olhar daquela criança as experiências de cada um deles eram tão ricas tão marcantes e incríveis. Eu ainda quero entender melhor essas “lendas”, com as quais eu realmente convivi. Então, isso influenciou muito o meu olhar infantil, o entendimento do mundo. Claro, eu não passei por essas experiências de guerra, mas essas histórias me deram uma vivência. Talvez por isso eu leve isso para a Arte, pois foi uma vivência bonita. Não foi uma coisa horrível que eu vi, sangue e gente sofrendo. Eu trago a força desses vencedores, que sobreviveram, histórias de superação. E é aquilo, sob o olhar de uma criança que está conhecendo o mundo e tudo é belo. Eu uso isso no meu trabalho e eu só fui entender isso muito tempo depois. Tive um professor no curso de licenciatura indagou sobre o meu trabalho e pediu  para levar alguns cadernos da minha época de infância, quando levei e abri, era igual! Era a mesma coisa! Tinha soldado, tinha um tanque, tinha um trator que mais lembrava um tanque, tinha um poço. Olhei aquilo (admirado), (pois) são coisas que eu faço hoje. Ou seja, os desenhos que eu encontrei como artista, são os mesmos de quando era criança e eu não usei isso para a pesquisa. Tudo isso estava guardado lá e só depois eu fui resgatar essas histórias a pedido desse professor. Eu me entendi.

 

Silvia: Fale-me sobre o seu encontro e aprendizado das técnicas.

Laerte: No caso da gravura, eu tive seis meses de aula com o Hermann Tacasey e explorei as técnicas de várias maneiras. Porque estava também encontrando meu desenho e me desafiava. Trabalhei muito e às vezes, quando havia apresentações na sala de gravura, eu tinha que tirar os trabalhos que estavam todos espalhados pela sala. Havia gravuras minhas em todos os secadores, do chão ao teto. Eu estava realmente envolvido, experimentando e produzindo. Parecia até que eu estava correndo atrás de um prejuízo que eu tive de não ter encontrado o desenho antes.

O início na cerâmica foi mais difícil. Comecei fazendo dessa maneira, usando os moldes.

 

Silvia: Mas você modelava e...

 

Laerte: No começo eu só modelava a escultura e tinha um técnico que fazia o molde para mim e reproduzia as esculturas, queimava, pintava e tudo.

 

Silvia: Isso logo depois da experiência dos pratos em 2003 mais ou menos..

 

Laerte: Sim. Só que para mim era um pouco caro.

 

Silvia: É um trabalho bem específico, pouca gente faz.

 

Laerte: Pouca gente faz e é caro. É demorado. Foram surgindo mais exposições, o orçamento ficou apertado e já não conseguia financiar. Ficou pesado demais e aí aprendi a fazer molde para ficar mais barato e rápido.

 

Silvia: Fica mais acessível: você modela, constrói o molde e já reproduz.

 

Laerte: Aprendi a esmaltar também. Eu sei injetar a barbotina, mas como eu não tenho forno, a fundição é feita no mesmo local da queima. Nunca tive interesse de ter um por causa da minha limitação de espaço. Então, eu terceirizo, tanto a injeção de argila líquida  como a queima. Eu prefiro concentrar na parte criativa. Eu até poderia terceirizar o molde, mas por questão de tempo, não tem ninguém que poderia fazer a  quantidade de moldes que eu tenho e dentro do meu prazo.

Há peças que eu faço a tiragem e há peças que eu não faço, pois é muito frágil transportá-las e é preciso fazer tudo próximo ao forno.

Depois da primeira queima, se precisar esmaltar eu trago tudo para cá, esmalto com pincel e mando para queimar novamente. Uso esmaltes prontos.

Há um vai e volta até o trabalho ficar pronto. Para mim, cada trabalho possui uma história.

 

Silvia: A que temperatura você queima as peças?

 

Laerte: Em torno de 1000ºC. Em 2007, estavam selecionando artistas para participar de uma residência no EKWC (European Ceramic Workcentre) na Holanda. Fui indicado, mandei meu portfólio e apresentei para o pessoal. Era o ano do Brasil na Holanda e eles convidaram 5 artistas do Brasil para desenvolver um projeto lá durante 3 meses. Foi nessa época que eu realmente aprendi muito sobre cerâmica.

Eles convidam artistas, arquitetos e designers que são ignorantes na cerâmica, que acham que cerâmica é só xícara ou que não fazem ideia de como trabalhar com cerâmica. Para o EKWC, essas pessoas são as melhores para se trabalhar com cerâmica porque não têm vícios e não teve ninguém na vida previamente falando o que é certo ou errado. São pessoas que não têm carregado a questão da tradição no seu fazer e na sua poética.

A tradição em Arte e em Cerâmica é incrível por um lado. Por outro lado, tem que ter uma ruptura, senão você não evolui e fica preso a algo já inventado, seja ela uma técnica ou uma maneira de pensar, pois você não cresce, não ousa, não dá um passo além. Você fica preso.

 

Silvia: Em sua opinião, até que ponto o conhecimento da técnica e o contato com a matéria são importantes para o trabalho artístico?

 

Laerte: Vejo que muitos jovens artistas estão muito mais preocupados em serem famosos e não há interesse em colocar a mão na massa, mandam fazer suas obras de arte. É coisa de hoje.

Para mim, o mais incrível foi ter esse reencontro com a argila que é um material que eu tenho uma familiaridade grande. A argila é um material que é um bloco de terra molhada, lama, sei lá. Quando nós a tocamos, ela grava a textura da nossa mão. Então, nossa mão fica impregnada lá. E se nós dobrarmos o pedaço de argila, o desenho que ficou ali, fica no seu interior e ganha outra forma. Então isso, acaba virando uma memória dentro do material, algo que é encantador para mim. Por mais que você dobre , aperte, amasse, ele sempre vai ter essas formas, esses volumes dentro dela, essa memória carregada. Uma coisa que eu gosto muito da minha argila é que ela, por mais eu queime parte dela, que eu compre novas argilas, ela sempre será a mesma. Por exemplo, aquela estrutura ali, foi construída com uma argila que teve aquela forma, eu tirei o molde e aí o gesso veio para cá e essa argila foi seca e quebrada, reciclei e ela vai virar outra forma. Cada escultura nova que eu crio tem outra forma e tem essa memória. Acho isso muito poderoso. Por isso eu tenho um respeito muito grande por esse material. É como se todos os meus trabalhos, independente onde eles estão, no mundo, a essência deles estão naqueles pedaços de argila. Eu tento não perder estes pedaços. Evidentemente, sempre perdemos, na confecção de moldes, mas o grosso fica sempre ali.

 

Silvia: Qual é a importância do conhecimento técnico no seu trabalho?

 

Laerte: Agora, estou nesta minha pesquisa de cerâmica. O que faço, digo que é pesquisa e não a obra de arte. Estou sempre estudando alguns limites e as possibilidades do que eu vou conseguir fazer com a técnica. O meu primeiro trabalho foi o Acesso Negado, depois fiz a série da Batalha Naval.

A série Acesso Negado tem os palitos em baixo e a Batalha Naval que tem as bases móveis e as pessoas podem jogar. Normalmente, as pessoas nunca podem mexer em uma obra de arte numa exposição, mas através de um jogo podem movimentar as peças. Então, essa exposição sempre estava em movimento. Tem as questões técnicas, mas também tem a preocupação de como as esculturas se dão no espaço expositivo.

No trabalho re.van.che, por exemplo, eu quis dar uma impressão de couro. Se eu trabalhasse dentro de uma tradição da cerâmica, eu não iria conseguir dar essa textura de couro do jeito que eu queria. Então, eu usei tinta de parede, inventei umas coisas e aí consegui a textura do couro na cerâmica. A maneira que eu construí os moldes possibilitou que eu reproduzisse cada detalhe: a linha (costura) da luva de boxe, do saco de pancada. Existem trabalhos que você consegue ver a linha e trama do tecido ainda, de tão incrível que é esse material. E aí se eu esmaltasse, eu perderia todos esses detalhes, a textura, pois o esmalte infla. Então, eu tive buscar outras soluções, desrespeitando a tradição.

 

Silvia: Não acho que seja um desrespeito...

 

Laerte: Desrespeitando no sentido de seguir uma tradição. É mesmo “chutando o balde” e não ligando para nada disso, porque se eu fosse seguir todas as regras não teria feito esse trabalho e fazer esse trabalho, era muito importante para mim. E também chamar uma atleta. Então, é uma união de várias coisas: o trabalho novo, desafiador, eu encosto minha produção com o esporte. Há muitos anos, eu era atleta, estava no tatame, então eu volto para o tatame, e a atleta invade o ateliê.

 

Silvia: Você fazia Taekwondo também?

 

Laerte: Não, eu praticava Jiu-jitsu. Fiz Kung fu um tempo também. Para mim, é vital ter esse ciclo e não ficar só no ateliê. Unir minha produção com outras áreas. Daí surgiu esse trabalho de quase um Hiper-realismo, mas de você enganar o olhar e essa coisa de um autodesafio para tentar e conseguir fazer uma luva de boxe parecida com a luva de boxe de verdade, usando cerâmica, sem que as pessoas percebam, ao olhar, que é cerâmica.

Silvia: Percebe-se o seu grande conhecimento técnico. Você acha que você obteria os mesmos resultados, sem o conhecimento das técnicas?

 

Laerte: Tudo que eu não sei, eu busco maneiras de tentar aprender. Fora os moldes, eu acabei aprendendo a fazer sozinho. É claro, hoje em dia tem Youtube, então, você consegue informações para fazer o que quiser. Pesquisa-se e daí encontramos um vídeo de alguém que fez e faz. Eu fui pesquisando, eu sempre fiquei muito no ateliê produzindo, mas o que eu não sabia fazer, eu pesquisei e fui na raça fazer.

Esse projeto, por exemplo, fiz com desenho técnico e enviei ao Paço das Artes. Estava tentando entrar nesse projeto, a Temporada no Paço das Artes, há mais de dez anos. Nunca havia conseguido. Tentei com vídeo, gravura e várias outras coisas. Finalmente eu consegui com esse trabalho chamado re.van.che. Ou seja, é uma revanche porque eu estava há dez anos tentando e finalmente consegui. É revanche também porque a cerâmica é um material imprevisível, quando menos se espera, estoura no forno. Eu quis dar essa revanche na cerâmica. Em uma exposição pelo menos, eu quero ter o poder sobre este material e aí que pensei como eu poderia quebrar. Assim, surgiu essa ideia de fazer essa performance, convidar uma atleta de Taekwondo por causa do chute e de fazer um tipo de academia com barquinha de corner e outros elementos. Então, as pessoas que estavam na exposição, viam tudo aquilo e não entendiam direito, indagando tudo sobre tudo aquilo, o porquê de trazer uma academia para um espaço expositivo. Tipo, isso é arte? E de repente chega a atleta quebra e denuncia o material: a cerâmica.

 

Silvia: Assisti ao vídeo e no momento do chute, fica um silêncio absoluto.

 

Laerte: É um momento plástico e bonito. E todos descobrem que aquilo tudo é cerâmica. Você olha para a luta e vê que é cerâmica em tudo.  Eu aprendi muito com este trabalho e até com a parceria com essa atleta. Fiz esse trabalho várias vezes e ela liga de vez em quando perguntando quando haverá outra apresentação dessa. Aí eu respondo que não, pois já o fiz em vários lugares do Brasil.

E perguntei para a atleta o que ela havia achado da experiência e ela respondeu: "Laerte, para mim foi uma experiência incrível. A minha adrenalina ficou mais forte do que quando participo de um campeonato Panamericano. Porque quando vou lutar, eu conheço o meu oponente. O saco de pancada em cerâmica é um elemento totalmente estranho”.

 

Silvia: Essa exposição ocorreu em vários espaços pelo Brasil. E as atletas fizeram algum teste antes da performance?

Laerte: Sim, elas testaram em uma peça no ateliê. Só que não sabemos ao certo como vai ser na hora. As peças são feitas, cada uma com espessura diferente. Algumas peças tinham as paredes mais grossas, outras mais finas. Além dos elementos serem diferentes para a atleta, o público também era. Então, a adrenalina subia. Mais do que um campeonato em que ela depende disso para viver, há as medalhas. Ela não ganhou uma medalha na performance, mas acho que eu poderia ter feito uma medalha para ela (risos).

Eu sabia que se o projeto fosse aprovado e de fato foi, teria outros desafios.

 

Silvia: Ou seja, você ainda não tinha feito nenhuma das peças antes de apresenta-lo ao Paço. Você mandou somente a ideia antes.

 

Laerte: Sim, tanto é que no projeto inicial era para ser uma lutadora dando um soco e no final ficou sendo um chute.

 

Silvia: Ela realmente incorporou todo o contexto, ficou concentrada e tudo mais.

 

Laerte: De fato, ali é uma luta. Além disso, tem o meu lado, a minha visão. O tempo todo eu fiquei ao lado dela. Teve um preparo antes: um aquecimento e ali eu fazia o papel do técnico. Filmei a situação, ficava dando orientações e falava palavras de motivação.

 

Silvia: Então, você partiu de algo desconhecido, foi atrás de conhecimento e meios para realizá-lo.

 

Laerte: Na verdade, a re.van.che não surgiu do nada. Foi um mix de várias vivências. Na época, eu estava morando na Liberdade e lá existem muitas lojas de equipamentos de luta. Passava em frente delas diariamente. Tem também academias de luta. E tive a experiência de ter lutado e então é um resultado de várias coisas. Meu ateliê se localiza no quarto andar e, então, eu era praticamente um atleta que subia e descia as escadas, diariamente, com materiais pesados.  Essa coisa de treinamento árduo. Minha vida era um pouco isso e essa vivência pessoal ficou muito forte e aí tudo isso se encontrou, resultando nesse trabalho. 

Além do trabalho, fiz um mini documentário em que eu entrevisto a atleta e apanho no tatame (risos). Foi exibido durante a exposição, junto como vídeo da performance.

Na exposição havia dois protetores de pé, de cabeça, de boca, banquinho de corner e a pêra. Havia grande parte dos equipamentos de uma academia de luta.

Dos protetores de pés surgiu a pesquisa dos tênis (em cerâmica). Se formos analisar, há uma ligação com todos os trabalhos.

 

Silvia: Já ocorreu a exposição com os tênis?

 

Laerte: Todo processo é lento e de entendimento sobre o que é o trabalho. Normalmente, quando eu faço a exposição, às vezes existe algo que o ligue com o próximo trabalho. Quando eu fiz a exposição com as armas, a série Arma Branca, que é um painel de cem armas, eu coloquei alguns tênis camuflados, feitos em cerâmica, para dar a dica para o próximo trabalho, o 50% off. O interessante é que eu vi ceramista na exposição que olharam para os tênis e não reconheceram como sendo de cerâmica.

 

Silvia: Então, a proposta é sair da cerâmica, ultrapassar os seus limites mesmo.

 

Laerte: De transformá-la em outras coisas que a cerâmica não é. Poderia ser em outros materiais sim, mas entra na questão de que eu quero que seja em cerâmica, pois é argila. A argila faz parte de toda a minha vida.

No caso, eu achei super bacana fazer esses tênis. Fiz um estudo de como poderia fazer os moldes. Coloquei os tênis na exposição Arma Branca, comecei a pensar o que seria isso e se faria sentido naquele lugar. Então, foi um teste e acabei apresentando em vários lugares.

 

Silvia: Então, não necessariamente foi planejada para a exposição com as armas?

 

Laerte: Os tênis estavam camuflados ali. Remetiam às armas. E acabei pensando melhor sobre eles. Essa exposição foi em 2010 e  continuo fazendo esse trabalho, que resultou no Projeto 50% off que é composto por 300  pares de tênis. É bem demorado. São pintados um a um.

 

Silvia: Você tem algum assistente.

 

Laerte: Na verdade recentemente, estou com uma assistente que está em treinamento agora.  Há muito trabalho. De cada modelo de tênis eu faço de 5 a 6 cópias.  Então se são seis de cada molde, eu preciso de cinquenta moldes para completar 300 tênis. Como eu pretendo usar cinco modelos, então, são 60 moldes esquerdos e 60 moldes direitos totalizando 120.

 

Silvia: Esse número de cópias tem alguma relação com o conceito do trabalho ou é numero que você determinou.

 

Laerte: É um número que eu determinei para chegar nos 300 e é um desafio pessoal. Na verdade, eu comparo minha produção com o desempenho de um atleta de olímpiadas, em que você tem que correr sempre atrás daquele segundo para  bater o seu próprio recorde. Então, eu acabo colocando algumas metas e me desafiando, fazendo de tudo para alcançar meus objetivos.

 

Silvia: Há alguma relação com as regras da gravura? Pois nela, o artista determina um número de tiragens.

 

Laerte: No caso da gravura, eu faço somente três cópias. Existem regras em outros meios, como por exemplo, na escultura, até seis cópias considera-se edição única.

Na verdade, sou eu quem determina as regras nos meus trabalhos. Por exemplo, na gravura, eu faço somente três cópias, pois sempre fui eu quem imprimiu e não quero perder tempo fazendo 1000 cópias de uma mesma matriz. Prefiro mil matrizes e  uma cópia de cada uma, porque daí eu estarei me desafiando como criador. Por isso, faço somente três cópias e um PA (prova de artista). No caso das cerâmicas, eu faço somente três. No entanto, na série dos tênis é diferente, porque as pinturas são diferentes em cada modelo. Então, serão consideradas únicas.

 

Silvia: São muitos tênis. Você pediu doações de tênis para este trabalho?

 

Laerte: Aprendo muito com cada projeto. Eu acabei comprando mais tênis sim, além de observar mais os pés das pessoas. Também pedi tênis emprestados para alguns amigos. Então, percebi que os tênis, que eu peguei emprestado, eram um retrato da pessoa. Não faço somente um tênis simples, pois existe o desgaste da sola, tem o jeito que a pessoa anda, que são sinais todos os lugares. Acaba tendo as características do dono do tênis e tudo isso acaba aparecendo de maneira extremamente silenciosa. 

Não quero tirar fotos dos tênis, sob vários ângulos e ficar explicando a anatomia dos pés de seus donos. No entanto, esses desgastes são detalhes silenciosos que fui percebendo, tem certo sentido para mim  e acho interessante, mas não precisa ficar evidente. Logicamente que numa conversa isso acaba ficando mais claro, mas não é uma coisa que quero "gritar" ao mundo. Já os tênis novos, não contam histórias de ninguém, mas os outros contam. Na verdade os novos contam histórias das próprias marcas, por exemplo, se é Nike estou falando da Nike, se é Rainha, estou falando de uma marca brasileira. Outro dia, peguei um Kichute. Por que peguei um Kichute? Porque é uma chuteira que foi muito importante para os meninos dos anos 70/80. Por muitos anos, ele foi utilizado por alpinistas. Eles retiravam as travas, deixando a sola lisa e depois eles podiam subir nas rochas.

Aos poucos, os desafios foram aumentando. Não me pergunte a razão de ter escolhido o número de 300 tênis. Acho que foi loucura, pois dá muito trabalho. Estou neste projeto há mais de dois anos, além de outros. Eu tenho que apresentar este projeto em junho[4] que será na Passagem Literária da Consolação.

Não são trabalhos para museu ou galeria, pois eu quero causar uma reação diferente nas pessoas que costumam frequentar um espaço de arte. Se for exposto numa galeria, todos vão saber que é uma obra de arte, pois é um espaço viciado em obra de arte. Queria colocar este trabalho num lugar que não tivesse relação tão direta com a arte. Então, o meu olhar foi para as vitrines de lojas. A vitrine de loja acabou determinando como eu iria apresentar este trabalho. Na verdade, escolhi o título 50% off  porque seria uma maneira de chamar a atenção, como se fosse uma promoção, tudo pela metade do preço. Também é 50% off  porque eu apresento os tênis numa vitrine de loja, mas só com um pé, ou seja, só metade do trabalho, para as pessoas não roubarem, conceito usado nas lojas.

Então, eu vou expor só uma das metades, pois na verdade estou fazendo dois trabalhos. Ou seja, dois painéis com 300 pés direitos e 300 pés esquerdos que será outro trabalho. Portanto, vou apresentar um trabalho na Passagem Literária e a outra metade vou guardar comigo. Não é a mesma coisa, mas os painéis possuem as mesmas características de fachada de loja. Os monitores da exposição estarão vestidos como se fossem vendedores. E por que deve ser na Passagem Literária? Porque lá tem uma grande vitrine com 27 metros de vidro. Normalmente, ocorrem exposições de arte lá, mas se eu fizer esse projeto lá, irão ficar zangados comigo. A primeira reação esperada das pessoas seria: "É um espaço que foi vendido e agora pertence a uma loja de tênis multimarcas! Isso aqui virou uma loja, mas era uma espaço cultural !" Com certeza, vai ter essa reação. Ao mesmo tempo, vou colocar um vídeo documentário, falando do processo de criação deste projeto, com um especialista em tênis falando sobre o assunto. O interessante de fazer uma grande quantidade é que convencerá que aquilo tudo não é cerâmica. Além disso, vou colocar um vídeo com todo processo que é árduo, cansativo e que levou cerca de dois anos para fazer. Quem vir o painel, não irá esquecer facilmente deste trabalho.

 

Silvia: O marcante está em todo o processo. O legal que os tênis, como você havia dito, contam histórias.

 

Laerte: Além disso, se tiver verba suficiente, tive a ideia de colocar um telefone tipo SAC (Serviço de atendimento ao cliente), onde as pessoas poderão ligar e  conversar comigo em alguns horários.  Como eu havia dito, alguns trabalhos fazem uma aproximação com o Marketing e Publicidade. Os trabalhos ganham um significado muito maior para mim, pois eles são feitos de acordo com o tempo que eles exigem. Como eu digo, a Arte tem seu tempo. Diferentemente de quando há uma pressão de galeria, por exemplo, que propõe  encomendas de certa quantidade para determinado tempo, não faz sentido. Então, melhor coisa é eu conseguir trabalhar para a pesquisa, me concentrar, ter esse tempo para a pesquisa, senão perco a oportunidade de ter esse contato com o próprio trabalho e explorar e ver o que o trabalho quer realmente ser. Então, para mim isso é fundamental, esse respeito e carinho. Não ter a pressa dos dias atuais.

Silvia: Há uma pressão grande nos dias de hoje, todos querem tudo para "ontem". O grande desafio é poder ser honesto com o seu próprio trabalho.

Laerte: Sim, claro. Com relação à sua pergunta anterior sobre o acampamento verde (a instalação Lastlândia), eu juntei vários elementos como se fosse uma minirretrospectiva de vários trabalhos. Neste trabalho, existem as armas, diferentes das armas que eu havia feito, mas que remetem à série de armas e tem os barcos, há dois, que são série da Batalha Naval. Acabei me desafiando em outras questões pontuais desses trabalhos, fiz um machado, um binóculo, a máscara e soldadinhos que remetem àqueles brinquedos de plástico de R$1,99, mas resgatando algumas coisas pontuais desses trabalhos anteriores.

 

Silvia: Remetem também às gravuras.

 

Laerte: Também. Então, tem esses intervalos, esses grupos, coloco aquelas luminárias rebaixadas porque estou questionando, é como se fosse um interrogatório, lâmpada de interrogatório, meio que você não enxerga o rosto da pessoa, algo parecido com filme e estereotipado, porque  são símbolos. Então, ilumino a instalação como se fosse um acampamento e coloquei areia no chão com o objetivo evitar que as pessoas invadissem esse espaço, pois se você pisa, fica a marca de sua pegada. Faço uma relação com as questões do Muro de Berlim que tinham várias camadas (de muro) para impedir que as pessoas invadam o outro lado.

 

Silvia: Realmente, conta um pouco de sua trajetória mesmo.

 

Laerte: Sim. Em paralelo a esses projetos, eu faço os almanaques. Acabei desenvolvendo um almanaque para cada grande exposição. É um material extra que adiciona valor à exposição. Às vezes, isso é distribuído gratuitamente ou é vendido por preços de R$ 20,00 a R$ 25,00, depende da exposição. Para exposição na Pinacoteca farei um almanaque específico. E também tinha vários desenhos que eu usava em projetos, não como obra de arte, mas que foram usados nos almanaques. É outro lado meu. No final, desenvolver uma obra de arte é muito séria e o almanaque dá uma quebrada nisso. É um trabalho que eu consigo ousar mais, um espaço que eu uso para falar algo que não consegui falar com o trabalho. Ele é muito mais eu como pessoa do que como artista. É mais despojado. Eu gosto dessa liberdade que eu tenho nesses almanaques. Esses almanaques têm uma importância muito grande. Esse é o Informação 5 que é um livreco que foi feito para a exposição das armas que já foi, mas ele será lançado nessa mesma exposição que acontecerá em Belém e o painel das cem armas será doado ao museu de lá, a Casa das Onze Janelas. Já desenvolvi o almanaque e agora só falta imprimir, o tema serão os alvos. Realmente é um paralelo, de um lado as armas e nos almanaques têm os alvos. Na Pinacoteca, o almanaque trabalhará o tema Pombo.

 

Silvia: Na Pinacoteca você vai apresentar o projeto Casamata. Casamata que tem relação com aqueles abrigos ou proteções utilizados em guerras.

 

Laerte: Sim.  Que são essas construções abauladas, que foi também o nome do meu antigo estúdio que atualmente chama-se Studium Generale. Antigamente, chamava-se Casamata Studium generale porque ele ficava num porão com essas formas, mas hoje é só Studium Generale.

O projeto Casamata fala sobre as construções de proteções.

 

Silvia: No Japão, especificamente num parque onde abriga o Monte Aso, que é na verdade um vulcão, há várias construções em concreto, com paredes  bem grossas, com uma entrada e sem janelas. O telhado é do mesmo material, formando assim, uma estrutura parecida com uma cápsula. Esses abrigos lembraram os seus trabalhos, pois são justamente utilizadas para abrigar em caso de erupções vulcânicas.

 

Laerte: Na verdade, este trabalho teve origem por causa do pássaro João de barro/ Furnarius Rufus. A última exposição que fiz era composto por cupinzeiros – ocorreu no Sesi e também teve a mesma origem.

Com relação às esculturas de pombos, que irão integrar a exposição Casamata, eu estava pensando em fazê-los com um material mais nobre e que conversa com os materiais de esculturas, presentes na Pinacoteca, como o bronze e o mármore.

[Neste momento, Laerte mostra uma fluxograma com todas as atividades que serão realizadas em um determinado projeto]

 

Silvia: Fale um pouco de sua experiência na Bordollo Pinheiro.

 

Laerte: Foi um desafio, pois ao chegar na fábrica, conheci as instalações, o museu, a história do Bordallo Pinheiro e sua importância para Portugal. Logo depois, você tem cinco minutos para decidir o que vai fazer.

 

Figura 119

Laerte Ramos

João de Barro/Furnarius Rufus

34,6x32,x28cm

Cerâmica esmaltada

2012

 

No projeto que seria desenvolvido ali, teríamos obrigatoriamente que utilizar moldes da fábrica. Foi bem desafiador, principalmente aos artistas que nunca haviam trabalhado com cerâmica antes. A sorte que eu tinha um projeto na minha cabeça e eu vi um painel de andorinhas lá, aí decidi que eu iria usá-lo para uma de  minhas esculturas. Eu modelei minha escultura, fiz a forma, usei um dos moldes deles, recortei os pássaros e os frisos, colei e construí a escultura.

Durante minha residência na Bordallo Pinheiro, visitei a fábrica de porcelana em Vista Alegre também.

 

Silvia: Depois você foi para lá também e como foi a sua experiência lá?

 

Laerte: Foi bem desafiador também, pois aqui no meu ateliê  eu sou dono de tudo, tenho bastante liberdade, faço o que eu quero, domino o espaço e respeito muito o tempo da minha pesquisa. Quando você entra numa fábrica...

 

Silvia: Você teve que usar os recursos deles também assim como na Bordallo?

 

Laerte: Não, foi diferente. Na verdade, na Bordallo não são oferecidas residências para artistas, este projeto foi único, bem específico, e terminou. Na Vista Alegre existe um programa de residência. Eles trabalham com porcelana e em cima de algumas linhas de peças. Quando eu fui lá, conheci a fábrica, a marca Vista Alegre o museu e o mais importante: o cliente Vista Alegre. Para eles, o que é fundamental é quem compra, quem é cliente porque é uma fábrica, diferente de uma galeria ou um museu. Eles focam em coisas que sejam viáveis para venda e que sejam capazes de serem reproduzidas em linha de produção. A maioria dos meus trabalhos aqui não é viável para uma linha de produção de uma fábrica e de porcelana que é uma massa mais complicada de trabalhar.  Eu acabei desenvolvendo decoração para jogo de mesa. Eles dão os briefings, dizem que tipo de peça precisa ser desenvolvida, seja ela uma luminária ou um jogo de mesa. Então, fiz alguns desenhos e mostrei aos setores de marketing, design e responsável pela fábrica. Eles disseram que poderiam produzir três jogos, pois tratava-se de uma obra artística e que não seria viável um produção em larga escala. Foi um grande aprendizado para mim. Não tive problemas em aceitar o fato de que não pudesse ser produzida em larga escala, não via diferença.

 

Silvia: É interessante essa união de arte, design e indústria. Há muitos artistas que tentam unir várias áreas.

 

Laerte: Sim, o Geraldo de Barros, por exemplo, produziu objetos como cama, movéis em geral. Então, quando o pessoal da Vista Alegre viu o projeto, disse que não seria viável, pois tratava de um trabalho de escultura e não poderia ser tratada como uma peça de decoração ou utilitária. Então, eles me promoveram do ID Pool para o EVOC que é um projeto para artistas mais experientes, mais velhos, que já tem uma carreira. Desenvolvi uma escultura em porcelana, o biscuit, sem esmalte. Fiz seis esculturas, os moldes, os positivos em gesso e outros moldes para entrar na linha produção. Permaneci lá trabalhando durante um mês na oficina de modelagem da fábrica.

Nem todos os trabalhos produzidos nas residências vão para linha de produção, pois existe a questão de custo envolvido. Pode ser que meu trabalho entre em linha de produção o ano que vem ou não.

 

Silvia: É muito importante essa parceria indústria e artista – o que deveria ocorrer mais aqui no Brasil também.

 

Laerte: Sim, é verdade. O SESI agora vai lançar um programa de residência, não sei como vai ser, mas serão selecionados artistas para trabalhar em empresas e indústrias.

 

Silvia: Só para retomar aquilo que estávamos falando sobre os seus trabalhos e processo criação, você acaba partindo de algo novo e até desconhecido e você vai atrás de conhecimento e meios para atingir seus objetivos.

 

Laerte: O projeto das armas, por exemplo, era para ser uma exposição de armas de verdade. Contatei uma delegada para viabilidade ao acesso às armas legalmente, mas seria muito complicado. Nunca pretendi conseguir pelo jeito ilegal, comprando arma, pois vai contra os meus princípios. Acabou sendo armas de brinquedo, mas sempre respeitando o tempo do trabalho. E vendo o trabalho pronto, agora vejo que é interessante o fato ser armas de brinquedo, pois abre para várias outras questões. Eu andei muito para conseguir essas armas, muitas lojas não vendem armas de brinquedo.

 

Silvia: Você optou por serem armas de brinquedo e depois você decidiu que seria em cerâmica?

 

Laerte: Não, sempre pensei que deveriam ser em cerâmica. Queria um painel com armas negras e outra com armas em branco, seguindo a mesma ideia do Acesso Negado.

Pensei bastante sobre a questão da branca e negra. Então, decidi que o esmalte seria preto, mas o título seria Arma Branca e por quê? Porque não tem fogo. A faca é uma arma branca. Escolhi este título porque essas armas não têm poder fogo nem disparo. O titulo é importante para o trabalho. Cada arma teve uma  tiragem de três cópias. Outro painel tem 100.

 

Silvia: E as armas foram modeladas?

 

Laerte: Não, tirei molde a partir das armas de brinquedos. Tem outro lado meu também, eu coleciono brinquedos, tipo Playmobil, por exemplo, entre outros.

 

Silvia: De fato, as formas dos seus trabalhos remetem também aos brinquedos. A série Sobre Rodas lembra brinquedos.

 

Laerte: Sim, os meus trabalhos têm muita relação com os brinquedos. Voltando aos painéis, a série Arma Branca possui um painel com 100 armas. E como são vendidos esses trabalhos? São vendidos inteiros. No caso do projeto 50% off é um trabalho só, não é vendido separadamente. Hoje em dia, eu não vendo os trabalhos separados, mas existem algumas galeria que possuem obras avulsas, mas o que está sendo produzido hoje em dia é um trabalho só, que é um painel só ou uma instalação. Acredito que os trabalhos devam se manter em blocos. No caso do acampamento, uma das edições é vendida separada, em subséries e outras duas o grupo inteiro. Um dos grupos será doado o MARCO (Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul). E eu costumo doar algum trabalho para o museu que estou expondo fora do eixo Rio-São Paulo, como o trabalho que foi para Belém. Acredito que seja importante incentivar museus fora desse eixo a ter doações de Arte Contemporânea.

 

Silvia: Acredito que todos se beneficiem: o artista, o museu e o público.

 

Laerte: Há outro problema: o Brasil é muito grande. Teve lugares que eu queria expor trabalhos, fazer doações, projeto e eu não consegui, pois não atendem nem o telefone ou nem respondem um email. Talvez por não compreenderem a importância dessa troca.

Atualmente tenho muito trabalho a fazer. No momento, estou trabalhando no 50% off, fazendo a fundição dos tênis, queima e pintura. É um processo demorado e ocorrem alguns acidentes e perdas.

 

Silvia: Você consegue ver essa série e as demais em outros materiais?

 

Laerte: Sim, em madeira, acrílico ou vidro. No entanto, atualmente estou focado na cerâmica porque, assim como havia dito, gosto do material e acho que depois de esmaltada é um material extremamente tátil. Não dá para ver somente com os olhos, você tem vontade de tocar. Isso porque é um material que faz parte do nosso cotidiano como o azulejo, o vaso sanitário. É cerâmica, assim como a pia, a xícara e o prato.

Agora, quando vemos uma escultura, que é uma coisa que está fora desse contexto, é algo que conseguimos entender direito. Por que será que mesmo sendo um material tão familiar, quando você depara com uma escultura isso nos causa um estranhamento? Sendo um material comum, do dia-a-dia, quando é uma escultura, que está fora desse contexto, isso chama a atenção.  

 

 

[10] Cité Internationale des Arts  em Paris, França, é um programa de residência artística oferecido à artistas profissionais no mundo inteiro.

[11] Imagem disponível em: http://www.museusegall.org.br/mlsLeilao.asp?sLeil=9  Acesso em: 15/08/2013

[12]  Vídeos disponíveis em: https://www.youtube.com/user/laerteramos/videos. Acesso em: 01/12/2014.

[13] A Exposição 50% off foi realizada também no Itaú Cultural em São Paulo de Março a Outubro/2014.

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