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Laerte Ramos e a Liberdade, por Daniela Name - 2011

No Japão, os documentos mais importantes na vida de um cidadão não são assinados com caneta. Um carimbo personalizado, hanko, é usado tanto em contratos quanto em certidões. Um japonês pode ter em casa ou na empresa diversos tipos de hanko – dos mais simples, chamados mitomein, aos mais sofisticados, ginkoin, que são registrados na prefeitura e têm o mesmo papel do reconhecimento de firma feito pelos cartórios brasileiros. É curioso que, ao se debruçar sobre o bairro da Liberdade, Laerte Ramos tenha escolhido fazer serigrafias que usam a noção de hanko e de assinatura nipônica para estabelecer uma reconexão com o reduto dos japoneses em São Paulo. Ramos manteve anos um ateliê no bairro, frequentando cotidianamente restaurantes e estabelecimentos comerciais da colônia. Em Mapas invisíveis, apresentou gravuras que têm como única impressão uma pequena estampa vermelha no canto inferior direito do papel em branco. No lugar dos sofisticados ideogramas orientais, a assinatura é constituída por uma imagem retirada do próprio repertório do artista: são tanques, material bélico e alvos simplificados até o ponto em que quase se transformam em cartoon, imagens de desenho animado ou personagens de brinquedo. A obra de Ramos é povoada por uma iconografia pop e lúdica, incluindo jogos bélicos como Batalha naval e a relação com o boxe e as artes marciais, além de exércitos, montanhas para trincheiras e Patrulhas de resgate. O corpo é muito importante na execução de cada obra. O início de sua formação profissional se deu na gravura, mas antes disso ele fez o ensino médio em um colégio que valorizava o trabalho manual. A pesquisa regular na escultura feita em cerâmica revela a importância deste labor no processo criativo do artista, e também a grande ambiguidade que acaba cobrindo cada uma de suas peças de louça. Seus tanques de guerra meio anfíbios, com formas ovóides e híbridas, fazem o elogio de uma iconografia viril, mas ao mesmo tempo se desmancham em fragilidades ao revelar o material instável e que são feitos. A aparência de brinquedo sugere uma natureza industrial, feita em série, que ganha outros contornos quando pensamos no suor e no caráter artesanal do molde de gesso, que dá forma a cada peça de cerâmica. Há outro tempo e outra realidade material escondidos em cada peça. Na serigrafia, esta ilusão de aparência é semelhante, porque o ícone nestes trabalhos parece ter sido impresso em gráfica. Mas é fruto de um processo ainda manual, através do qual se tinge com tinta um desenho transformado em máscara sobre o papel. Movimento e metáfora, como na caligrafia japonesa. Rastro de um corpo, como no carimbo que transforma ideogramas em “firma”, ícone e síntese. Na montagem da mostra, buscou-se um arranjo visual que criou um fio horizontal com estes trabalhos extremamente verticais, que ocupam a paredes como paisagem, mas também como totens. Arquetípicos, os ícones de Ramos são como as estátuas dos muitos deuses xintoístas que podem guardar a entrada do templo em troca da adoração por incenso. Ou como um paredão de samurais vigiando o sono de uma cidade adormecida. Um guerreiro empresta parte de sua vida para seus protegidos. Um deus é um eterno imigrante velando a paz dos vivos. Ramos também imigrou ao chegar novamente à Liberdade. Transformou sua obra em carimbo nipônico e imprimiu sobre o papel um pouco de si mesmo – seus personagens, sua memória, seus brinquedos. Trouxe um mundo estrangeiro para o papel em branco, colonizando-o com influências distantes, como fizeram os japoneses com este cantão de São Paulo.

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