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2.4 Livros são formas, por Gal Neves - 2009

Inevitavelmente os processos de criação ocorrem imbricados. Resíduos de um, parte de outros, novos pedaços inseridos fazem parte da(s) trama(s), mesclando, atualizando e/ou dimensionando discursos e novos processos com possibilidades de obras. Não há separações, o movimento criativo é fluído e contínuo. Numa atitude de “profundo respeito” a essa dinâmica comportamental e à própria materialidade das obras que se (re)configuram, Laerte Ramos dá de si para os processos, para que estes sejam eles mesmos atratores de sua própria identidade. “Por que prender a vida em conceitos e normas? O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... Dor e Prazer... Tudo, afinal, são formas” (QUINTANA, Espelho Mágico, 2005). Laerte não se especializou em técnicas, embora apresente perícia em muitos fazeres artísticos. A sua grande questão é a não eleição de um procedimento apenas. O artista desloca-se entre práticas, abrindo brechas de execução nas tradições das técnicas artísticas, e em cada lance busca pontos de fuga e novas problematizações na matéria-prima e no seu lidar, validando linguagens convenientes aos seus trabalhos e reajustando relações inovadoras nos campos tratados, muitas vezes, como específicos. O conhecimento e a experiência artística em muitas técnicas e materiais, ele exercita desde cedo. O artista teve uma educação baseada numa abordagem artística do pensar e aprender, com atividades artesanais específicas para cada idade (Pedagogia Waldorf). Para ele, sua intimidade com tantos materiais e com os processos de construção, em geral, vem desta época. “Praticamente todos os trabalhos de arte, que eu faço, eu não terceirizo, porque para mim o sentido do trabalho se estabelece no colocar a mão na massa. E isso se reflete na minha produção. Eu tenho mobilidade e possibilidade de mexer com quase tudo e também de não ter medo de tentar e experimentar. Mas eu tenho certo que mesmo me arriscando, o meu trabalho é sério”, explica Laerte. Segundo Laerte, a faculdade (FAAP) contribuiu muito para o seu trabalho, pois foi no espaço acadêmico que ele aprendeu realmente o que era arte e que seus repertórios sobre mercado da arte, acabamento e refinamento de trabalho, aprimoramento de técnicas, amadurecimento e autocrítica, história e teoria da arte foram enriquecidos. “Eu tive aula de tudo e fazia um pouco de tudo. Na faculdade, eu tive a oportunidade de direcionar um pouco o meu trabalho. Para mim, os caminhos levavam para a xilogravura: imagem, prensa, espelhamento, reprodução”, diz Laerte. O raciocínio artístico de Laerte para a produção de imagens sempre se guiou pelas técnicas e procedimentos da gravura: “Se eu faço pintura, por exemplo, o pensamento que vai se colocar ali é o da gravura. Minha pintura é mais gravura que pintura. As montanhas em cerâmica que eu faço são cortadas com o mesmo estilete que eu gravo”. A gravura, para o artista, se conforma mais que técnica, mas também como linguagem, procedimento artístico e método de construção. Esse contorno de processos de criação do artista ligado pela gravura também permite estabelecer vínculos conceituais e referências visuais entre seus trabalhos. “O meu trabalho apresenta moldes”, afirma Laerte, e isso aponta de fato suas referências artísticas à matriz da xilogravura. O método de produção e pensamento de suas obras se dá pelas bases da idéia de matriz, na xilogravura. Além disso, Laerte reforça as intensas ligações entre as suas obras com a memória residente no próprio material. Segundo o artista, a argila que ele usa para fazer uma escultura é como se fosse uma matriz, pois ele faz um molde e depois a recicla. A argila é guardada e sempre reaproveitada em outras obras, como uma espécie de mecanismo para manter uma herança e as interconexões entre os trabalhos. “A argila que eu trabalho tem oito anos e já foi várias esculturas. Ela tem várias formas dentro dela mesma. Ninguém vê isso, mas na hora de fazer, eu respeito a argila, porque ali tem as histórias de todas as outras esculturas”, completa o artista. Mesmo admitindo a importância do processo da xilogravura no seu trabalho, como um todo, Laerte se impõe sempre critérios de inovação de linguagem. Para ele, a gravura como é feita atualmente ainda está muito presa ao passado e às condições limitadoras de enquadramento e visualidade. Laerte desconsidera os veios da madeira, por isso trabalha com MDF, um material relativamente novo, produzindo imagens bem chapadas. O artista atualiza a técnica, ou melhor, as linguagens da xilogravura, renovando os repertórios de imagem com temas contemporâneos e “abrindo” a matriz, livrando-a dos enquadramentos mais duros e das molduras. Laerte busca formas abertas, explorando e desestabilizando o “dentro e fora” das composições: “A parte não usada do papel também é parte da composição. O papel, para mim, não é um simples suporte, mas também uma outra matriz. A matriz não é mais importante que o papel. O papel não apenas recebe a imagem, mas também é imagem”. A referência da matriz da xilogravura se estende por todos os trabalhos criados pelo artista: desde a confecção de seus “uniformes para performance”, passando pela serigrafia de camisetas, desenvolvimento de estampas e produção de objetos de chumbo. “Tudo tem que ser reproduzível, mas não ao extremo. Tudo tem uma cópia reduzida, sempre respeitando a identidade do trabalho. Eu faço três reproduções de cada gravura, por exemplo”, explica o artista. A produção de Laerte permite e “exige” um trânsito incessante entre vários meios: pintura, vídeo, performance, livro, design gráfico, cerâmica, xilogravura, stencil. O artista opera hibridismos e seja qual for a materialidade, algo de conceitual e visual, além da gravura, estabelecem diálogos entre suas obras: “Há uma constante que se repete e que também se modifica, através do desenvolvimento do próximo trabalho. Os meus trabalhos vão se encostando e se relacionando. Parece um efeito dominó, mas que muda, e pode gerar coisas completamente diferentes, mas que sempre estão conversando”. Segundo Laerte, estabelecer “parcerias” e relações entre suas obras e entre linguagens e técnicas é um desafio constante. Para Laerte, seu primeiro livro de artista foi um diário, feito durante uma residência de seis meses em Paris, em 2001. O livro de artista consiste na elaboração de uma página diariamente com dez quadrinhos contendo desenhos de casas, edifícios, torres, castelos, em traços bem simples e geométricos. Embora sejam desenhos com caneta Bic, Laerte nota que essa experimentação contribuiu para inserir o elemento linha nos seus repertórios de xilogravura, pois, como observa, seus trabalhos são compostos por blocos e massas mais cheias. O artista afirma que não há nenhuma repetição nos estudos dos desenhos, o que lhe exigiu muita concentração. “Sobre rodas” é um projeto do artista que estabelece vínculos entre xilogravura e livro. Segundo Laerte, “a lei de criação a ser respeitada no desenvolvimento das xilogravuras para o livro é que todas devem apresentar objetos sobre rodas. Quero que tenha a cara de guia, impressas em papel jornal, mesmo”. Serão feitas mil, cento e vinte e sete xilogravuras. Trezentas xilogravuras já estão impressas, e outras quatrocentas matrizes estão prontas para a impressão. “Sobre rodas” já tem nove anos de construção, o artista retoma o projeto sempre que pode. Para ele, as mudanças nos traços das imagens e a inclusão de novos repertórios no tema são interessantes, pois conferem uma materialidade histórica, transmitem um amadurecimento do processo e uma seqüencialidade às imagens. Daí, o suporte livro ser a solução adequada para o projeto, pois possibilita a seqüência narrativa plástica das imagens, além de viabilizar o projeto financeiramente: “O livro é a solução e o resultado final de tudo. É quase um ponto final da série”. A vontade de criar um livro para essas xilogravuras é quase que o estabelecimento formal de um “passeio” pela obra do artista, que abarca em apenas um volume as mudanças, as retomadas, as “evoluções” e os seus repertórios, ao longo de uma produção extensa temporal e visualmente. Para Laerte, viver em outros lugares lhe possibilita “abrir os olhos a outro universo de repertórios, parece que se recebe duas vezes mais informações. Eu reconheço que há filtros naturais na minha poética, há também um tempo de entendimento, mas sempre alguma coisa entra na produção”. Essa “alguma coisa” são nuvens, exatamente pela falta delas no céu suíço, em 2004, quando Laerte estava numa residência. O artista começou a desenhar muitos modelos de nuvens. O trabalho foi retomado em 2007, quando o artista estava trabalhando com cerâmica (Exposição P&B). Laerte vetorizou, “aprimorou” e “afinou” o traço dos desenhos das nuvens. E mais uma vez, com o objetivo de “fechar uma produção”, o artista recorreu aos procedimentos de construção do livro. No livro de artista “Cartilhas das nuvens”, o artista explica que há um grande apelo para o design, pois ele queria que o livro fosse plasticamente bonito e com bom acabamento. O livro é uma espécie de “cartilha” com cem nuvens. Cada uma das nuvens tem um título, a partir de uma sensação “que ela passa, que ela é ou que ela quer ser”. Segundo o artista, “Cartilhas das nuvens”foi pensado para despertar a vontade de interagir com suas peças e foi um projeto que pretendia explorar “o lúdico, o jogo e as qualidades de brinquedo, com humor, mas sem regras pré-estabelecidas”. “Eu pensei muito em livro e queria que esse livro tivesse uma presença marcante. É o primeiro livro que eu estou apresentando. Eu pensei muito no usuário, em quem ia colocar as mãos nesse livro e em que lugar da casa ele iria ficar”, explica o artista. Com esses critérios, Laerte criou um livro aberto, com páginas soltas, com carimbos de cerâmica à mostra, numa caixa também de cerâmica. Para o artista, a cerâmica entrou neste projeto como uma forma de atualização do próprio material e também como item de inovação usado ao lado de um livro. Os carimbos podem ser vistos como índices do processo de gravura do artista, que abre possibilidades ao usuário de também estampar desenhos e interagir livremente com os componentes do “livro”. O volume do conjunto foi criado intencionalmente para não descansar em prateleiras, com outros livros, segundo Laerte. Para ele, os materiais utilizados (papel e cerâmica) estão em consonância com os conceitos de fragilidade, cuidado e leveza do tema (nuvens), e juntos - materialidade e conceito - viabilizam uma necessidade de delicadeza gestual no manuseio e uma atmosfera de “respeito” e cuidado com o livro. Neste passeio entre meios, obras, linguagens e técnicas, Laerte se multiplica e intensifica seu insistente repensar sobre o fazer artístico, no qual as elaborações dialogicamente complexas se estendem e se justapõem por entre poéticas, materialidades e visualidades sempre renováveis e ao mesmo tempo, detentoras de memórias mútuas. Exemplo destas relações complexas entre as produções e reflexões sobre o fazer artístico de Laerte é a sua idéia sobre a impressão da xilogravura. Para o artista, a xilogravura é vista com uma possível página ou como uma unidade de livro. E o papel é um meio viabilizador comum entre esses repertórios formais, e também uma estratégia visual e conceitual para expandir as relações entre os dois meios, - livro e gravura - um critério sempre importante para a produção de Laerte, como já dito anteriormente. Para Laerte, a idéia dos procedimentos de criação que envolvem a construção de livros e os componentes conceituais e plásticos de livros sempre estiveram presentes no seu percurso criativo. Ao que parece, o artista recorre às possibilidades criativas em volumes, em alguns momentos, com a intenção de reunião, arquivo ou coleção de suas obras, com um “status” de completude e de organização selada, que são viabilizadas pelo livro. É como se o volume, a materialidade e a presença física, conceitual e simbólica do livro dessem conta de abarcar uma totalidade da obra proposta e, ao mesmo tempo, resolvessem questões de acabamento e de “finalização satisfatória” de um processo de criação.

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