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Guerra Vítrea, por Guilherme Bueno - 2008

À primeira vista os objetos são estranhos e familiares. Lembram-nos algo conhecido, próximo, porém não sabemos exatamente o quê. Há algo de doméstico neles e o maravilhamento da incerteza. A tentação de nos aproximarmos é proporcional ao temor de conspurcar a fragilidade de um mundo que parece fechado, preservado em si mesmo. A pele, sedutora e delicada, é reativa, por conta de algumas eventuais protuberâncias pontiagudas, agressivas até. A escala é a da mão, e também a do vacilo desta em esfacelar aquele equilíbrio vítreo. Acesso Negado, Acesso Negrado, de Laerte Ramos explora a tensão da intimidade justamente no ponto sutil de sua porosidade – o trabalho jamais é confessional; ao contrário, ergue-se na inusitada divisória entre o adentrar e o preservar-se do mundo. Seus objetos evocam camadas de negociação menos entre o público e o privado do que do eu consigo mesmo: réplicas em escala diminuta de antigas máquinas de guerra, maquetes de objetos a um só tempo reclusos e “públicos” (e, por vezes, só o notamos após os observar longamente, tentando decifrar de onde os conhecemos – algumas jamais existiram senão como projetos – uma batalha do olho), eles têm o tamanho de brinquedos, mas não são para serem usados; possuem a durabilidade da cerâmica e o prenúncio de seus cacos. Tudo pede e repele a proximidade. O contato nunca é fácil, tocar pode ser destruir. Isso, contudo, não constitui uma repressão e sim o reencontro com uma sensualidade latente na matéria que escapa ao apelo óbvio e finalista. Por uma bela aporia, um trabalho como a cerâmica, cuja feitura depende tanto do uso direto e dedicado da mão instiga o espectador a tocar sua superfície com os olhos. De certo modo, eles reativam o desejo do olhar, ou melhor, um olho desejante. Por outro lado, nestas pequenas negociações, uma guerra pessoal se trava nesse espaço quase asséptico e delicado. A questão não é o que se é negado, mas a presença evidente da zona de ninguém havida na fronteira entre invasão e interdição – il suffit d’avancer pour vivre, d’aller droit devant soi... – as paredes de cerâmica são analogias de nossa epiderme. Até onde eles invadem ou protegem? Há de fato ali distinção entre estas duas ações? O obstáculo se replica, do objeto em si (pois cada um deles agride e defende simultaneamente) para o antagonismo de seus duplos e da própria linguagem em espirais simétricas de negativos: acesso negrado (negrado, uma palavra a princípio inexistente, surge não só para descrever, mas extrapolar a cidadela dos significados classificados pela linguagem – ela também é invadida). O deslize da linguagem é equivalente a manobra astuta de percurso do olhar na atenção aos sutis movimentos que ali se desenrolam: a oposição dos objetos dispostos é aquela de cores, campos ocupados, exterioridade e interioridade, resistência e fragilidade.  Contudo, este épico domiciliar não se rende nem a domesticação nem a mistificação: sua aparente bagunça não declama retoricamente a crise de um sujeito ciclópico (ainda que espelhe sua potencial fragmentação – basta cair...), sequer o desalento da pequenez (como maquete da humanidade), mas o quanto nossa economia existencial acaba lidando em suas diferentes esferas com peculiares encruzilhadas de acessibilidade forçada no mundo: os conflitos do sujeito, sejam eles ensimesmados ou em sua afirmação diante do que lhe é externo – supondo-se viável tal distinção – não deixam de guardar consigo algo irônico, a saber, uma monumentalidade ao alcance das mãos e delas prevenida. Pelos olhos se redescobre a mão e, por extensão, a própria fluidez do sujeito na abertura de seus caminhos.

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